Nem sempre os efeitos do desenvolvimento econômico são
compartilhados entre toda a sociedade. Mas quando o capitalismo entra em crise,
o reflexo é sentido por todos, principalmente pelos trabalhadores. A renda fica
mais curta, as ofertas de emprego se tornam mais escassas e a insegurança se
espalha. Ambiente perfeito para a retomada do discurso de que a legislação
trabalhista é engessada, protecionista e precisa se modernizar.
Recentemente, nosso país passou por uma fase de grande
desenvolvimento e crescimento econômico. Em 2010, por exemplo, o Produto
Interno Bruto (PIB) nacional teve um aumento real recorde de 7,6%. Pelo aspecto
social, em virtude do resultado direto da adoção de políticas públicas, milhões
de pessoas abandonaram a linha da miséria e a fome foi erradicada.
No mundo do trabalho, embora as taxas de desemprego nunca
tenham alcançado patamares tão baixos, ainda assim não se presenciou uma
"divisão ideal" dos resultados destes tempos de bonança. Ao
contrário. A ideia de "ter emprego" era sempre mais que suficiente
para dar por atendida a massa de mais de 45 milhões de pessoas alocadas no
mercado formal.
Por outro lado, esse cenário não foi suficiente para
reduzir uma grande massa de "invisíveis" que nunca foi beneficiada
pela "política do emprego": trabalhadores na informalidade,
indivíduos explorados no campo e na cidade e submetidos à condição de escravos,
seres humanos vítimas de tráfico, crianças e adolescentes ainda expostas a
situação laboral ilegal... Os efeitos do desenvolvimento e do crescimento
econômico, portanto, não alcançaram efetivamente estas pessoas.
Desde o ano passado, o cenário político e econômico
brasileiro mudou de forma drástica. Hoje vivemos uma das maiores crises
econômicas da história. Em 2015, o PIB caiu 3,8%, o pior resultado desde 1990,
e as projeções para este ano não são nada animadoras. Com a atividade econômica
em queda, os índices de desemprego vêm subindo. Segundo cálculos do IBGE, a
taxa de desocupação trimestral encerrou o mês de janeiro em 9,5%.
É matemático: todas as vezes que a economia desacelera,
buscam-se fórmulas para retomada do desenvolvimento, acusando o protecionismo
da legislação trabalhista. Na verdade, o capital nunca entra em crise, pois ele
apenas precisa de "ajustes" que invariavelmente sacrificam o
"humano".
Não é diferente, agora. Os arautos da preocupação com a
"retomada do desenvolvimento econômico" apregoam aos quatro ventos
que o excesso de intervencionismo estatal nas relações de trabalho termina por
desorganizar a economia. Travestidos de sofisticada e aparente modernidade,
depositam na legislação trabalhista a origem de todos os males que impedem a
sustentabilidade das empresas.
A situação é tão curiosa que um dos lemas dos
trabalhadores nas grandes greves dos anos 80 — "nós não vamos pagar o
pato" — foi adotado por uma ala do setor empresarial. E o paradoxo é tão
latente que, em épocas como essa, jamais se cogita a necessidade de reformas
política e tributária. É sempre e tão-somente a trabalhista que urge.
Poderia ser simplista dizer que isso ocorre porque a
corda arrebenta do lado do mais fraco. Mas esta afirmação é, na verdade, a
essência das relações de trabalho. Elas são efetivamente pautadas numa situação
fática absolutamente desigual: de um lado, o capital avassalador (às vezes "imaterial",
travestido de "mercado"); do outro lado, o trabalho, o humano. Os
adeptos da reforma da legislação trabalhista sacrificam a memória e ignoram o
processo histórico a fim de defender o afastamento da intervenção estatal. E é
esse o ponto crucial para compreensão da doutrina perversa que atribui à
proteção a pecha de ultrapassada e antiquada.
Historicamente, a primeira relação na qual se reclamou a
atuação do Estado foi exatamente a laboral, tamanho eram os descalabros que
caracterizaram a Revolução Industrial: jornadas diárias de trabalho superiores
a 16 horas; inexistência de descanso semanal ou para refeições; condições
precárias no que tange à saúde e segurança; exploração de crianças, mulheres e
idosos, entre outros.
É natural e imprescindível, portanto, que a legislação
trabalhista seja protetiva. O princípio da proteção é um dos princípios
norteadores do Direito do Trabalho exatamente para evitar-se a barbárie
cometida nos primórdios da industrialização.
A situação é muito diferente no século XXI? Haveria uma
justificativa racional para se afastar a atuação estatal em proteção do
economicamente mais fraco? As partes da relação de trabalho estão em um patamar
mínimo de igualdade que lhes permita ajustar e pactuar com equilíbrio a
prestação do trabalho?
Os tempos mudaram, mas a essência dessas relações
continua igual. Mesmo com a evolução econômica alcançada pela sociedade no
século XXI, a crueldade que permeia a relação de trabalho é ainda latente e não
nos faltam exemplos para comprovar a ausência de condições de igualdade para
contratação do trabalho. Ficaremos aqui com apenas dois deles, paradigmáticos,
pois tratam de situações consolidadas no ordenamento jurídico e que vêm
sofrendo constantes ameaças de alteração legislativa. Estas alterações, inclusive,
pairaram na época do pleno desenvolvimento econômico e estão em vias de forte
retomada, sob o pretexto de "auxiliar" no combate à crise.
O primeiro deles diz respeito ao conceito legal de
trabalho escravo. O art. 149 do Código Penal considera trabalho escravo
contemporâneo a restrição da liberdade, a servidão por dívida, a jornada
exaustiva e as condições degradantes. Todas essas formas aviltam diretamente a
dignidade da pessoa que trabalha. A legislação, juntamente com outras políticas
públicas de combate à escravidão contemporânea, colocou o Brasil como modelo de
vanguarda mundial na matéria.
No entanto, tramita no Senado Federal projeto de lei que
esvazia o conceito, retirando do seu núcleo a jornada exaustiva e as condições
degradantes, tudo para reduzi-lo às situações mais tradicionais típicas da
escravidão do século XIX. A proposta, além de ser um retrocesso descomunal e
desconsiderar a realidade de grande número de pessoas que lamentavelmente ainda
vivem desta forma, no campo e na cidade, foi surpreendentemente pautada no
final do ano passado aproveitando-se da crise política. Apenas uma grande
mobilização da sociedade provocou a retirada de pauta, mas o projeto continua
tramitando.
O segundo exemplo envolve o verdadeiro aniquilamento do
Direito do Trabalho, com a instituição da terceirização ampla, geral e
irrestrita. Trata-se do PL 4.330, já aprovado na Câmara dos Deputados e
remetido ao Senado Federal (PLC 30/2015). A lógica do projeto é das mais
perversas, pois retira o que é considerado mais caro em uma relação de emprego:
a pessoalidade e a integração do indivíduo no empreendimento.
O trabalhador passa a ser tratado como "coisa",
respondendo não ao seu clássico patrão, mas à uma empresa intermediadora de mão
de obra, esta, sim diretamente contratada. Há tempos, a legislação e a
jurisprudência vêm impedindo o trator da institucionalização da terceirização,
admitindo-a apenas em casos específicos (asseio, conservação, segurança) e em
funções relacionadas à atividade-meio, ou seja, à aquela atividade que não é
ligada diretamente ao produto ou ao serviço final. Estender a terceirização a
todas as frentes empresariais tem por objetivo diluir o modelo de emprego,
tornando-o mais barato e dissipando a proteção social.
Estas duas tentativas de alteração legislativa demonstram
que a necessidade da intervenção do Estado é, nos tempos atuais, tão ou mais
necessária do que era na época da industrialização. Não falta, nos alicerces da
ordem jurídica brasileira, a preocupação em oferecer ao ser humano destituído
de riqueza mecanismos que propiciem uma existência digna por meio do trabalho.
A Constituição Federal é a prova concreta desta
afirmação, pois prevê, ao lado do princípio do valor social da livre
iniciativa, os princípios do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa
humana (art. 1º). Vai ainda mais longe quando delineia os princípios da ordem
econômica, fundando-a na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa;
assim como na propriedade privada, desde que esta desempenhe sua função social
(art. 170).
Não é possível admitir, portanto, que a "conta"
da crise econômica seja suportada apenas por um lado do binômio
capital-trabalho. E, como o "capital" é indubitavelmente a parte mais
equipada e preparada, é função precípua do Estado agir diretamente nesta
relação, para dar harmonia a esse convívio. Esta ação deve iniciar-se pela
manutenção das conquistas históricas asseguradas por lei; pela promoção de
outras novas, que busquem a adequação das situações de fato ao mundo atual;
pela forte atividade fiscalizatória de auditores e pela vigorosa atuação da
Justiça do Trabalho.
Nos últimos anos, como Instituição do Estado vocacionada
à salvaguarda dos direitos humanos decorrentes das relações laborais, o
Ministério Público do Trabalho também vem agindo fortemente como protagonista
na busca deste equilíbrio, tanto na sua atuação judicial e extrajudicial como
na sua atuação política, acompanhando de perto todo o processo legislativo para
preservar os valores da democracia, conforme lhe incumbiu o constituinte.
Assim, não é possível admitir, sob a desculpa da
superação da crise econômica, que o capital submeta o trabalho a sacrifícios
ainda maiores, para retomar seus níveis de lucratividade. Hoje em dia, o
"afastamento do Estado", a "reforma trabalhista" e a
"desregulamentação" são apenas disfarces sofisticados da precarização
das relações de trabalho.
É exatamente em um momento como este, de crise e
incertezas, que o Estado e suas Instituições devem atuar forte e pontualmente
na busca do equilíbrio material entre o capital e o trabalho para evitar a
retomada da barbárie e para possibilitar a inclusão social pelo trabalho com
dignidade.
Por Sandra Lia Simón, Subprocuradora-Geral do
Trabalho e Diretora-Geral Adjunta ESMPU
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